Parte da esquerda que decidiu pelo voto contrário às principais medidas do pacote reconheceu nelas mudanças estruturantes que, materializadas, trarão consequências profundas, para muito além da contenção de gastos e de uma repercussão antipática passageira. Acontece que os debates sobre o pacote de medidas envolveram posições não só sobre a central questão do impacto das medidas na vida da classe trabalhadora, mas também sobre qual será o impacto político das medidas na construção de um horizonte de país que rume à redução das desigualdades, ao desenvolvimento econômico combinado com desenvolvimento social e à proteção de garantias democráticas.
De forma que, longe da visão despolitizada e despolitizadora que acusa os votos de esquerda contra o pacote de serem votos fáceis e para “jogar para a galera” (até porque fomos também alvo de muitos ataques!), a posição contrária aponta uma divergência de linha política profunda.
Existe um desacordo de análise. As medidas que objetivamente foram a voto após as mudanças do Congresso realizam ajuste sem tocar no “andar de cima” e nas emendas parlamentares impositivas, que seguem absurdamente superdimensionadas. Some-se a isso o fato de que o Congresso, para além de esvaziar as medidas que chamavam o próprio parlamento a participar dos ajustes, conseguiu subverter a proposta de combate ao supersalários a tal ponto, que o texto agora os torna legais e constitucionais, aguardando indefinidamente algum limite que venha de uma lei aprovada em data futura não estabelecida.
Para além disso, fica evidente a existência de uma atuação chantagista do grande capital financeiro; e é pedagogicamente negativo simplesmente tratar aquilo que é aprovado nesse ambiente (de chantagem!) como se fosse uma negociação vitoriosa. O momento após a aprovação das medidas, em vez de significar uma vitória, tem sido de já se sentir a continuidade da manipulação de ambiente, já com cobranças de um novo pacote sem que sequer se tenha avançado em temas como os supersalários ou taxação da renda dos mais ricos.
As alegações de que o “mercado” não seria um bloco monolítico, e que estaria até agindo sob uma suposta irracionalidade, esquecem que o coração do poder especulativo tem sim, e muito, a capacidade de manipular e até criar tendências geradoras de instabilidade; e que esse mesmo setor tem lado político, chegando a ter incidido para melhorar os números do mundo das finanças quando o presidente Lula esteve hospitalizado.
Assim, e com tais medidas de final de ano aprovadas, o “mercado” (um conjunto mínimo de pessoas que defende os interesses dos mais ricos e poderosos do país e de fora dele) testa e consegue se assegurar de que basta chantagear para obter um aprofundamento de medidas contra a classe trabalhadora brasileira, sem querer sequer que se inicie qualquer debate sobre os setores privilegiados e sub-taxados. E não vejo nenhuma razão para achar que, mesmo com os bons números da economia, que promete terminar o ano de 2024 com cerca de 3,5% de crescimento do PIB, esse setor não continuaria utilizando os mesmos instrumentos de que dispõe, tanto mais quanto continuar percebendo que dá certo.
O resultado dos ajustes desse tipo (e como a Faria Lima sabe disso!) caminha para minar as condições políticas do governo e seu apoio popular; e tem o condão de frear a melhoria na vida do povo ao mesmo tempo em que aumenta as chances de vitória da extrema direita no país. Aliás, já que tem sido comum se tocar no tema da governabilidade, das eleições de 2026 e até de uma suposta deslealdade ao companheiro Lula vinda daqueles que divergiram, é importante que se saiba que há discordância profunda da tese de que a aprovação das medidas ajuda o governo e suas chances de reeleição. Na verdade, em um médio prazo que não tarda, fortalece um ambiente em que a extrema direita terá clima para ganhar espaço, com tudo de anti-povo e autoritarismo que isso implique.
Há, ainda, um contexto político que torna essa conjuntura de final de ano (pautado por cortes e repercussões que clamam que já venham mais cortes antipopulares) ainda mais sofrível. Poucas semanas atrás, dois fatos extremamente relevantes em nosso país ganharam os noticiários e rapidamente baixaram de audiência, ofuscados pelo debate do pacote de ajuste fiscal. O primeiro, a revelação de que a tentativa de Bolsonaro e militares de alta patente de dar um golpe envolveu até mesmo um plano para assassinar o presidente Lula, o vice-presidente Alckmin e o ministro Alexandre de Morais. A repercussão foi bem aquém da gravidade do que se descortinou, e, aliás, pouco capital político parece ter tirado dessas mesmas altas patentes militares, visto que seguiram dando o tom na negociação de um projeto que estendesse o ajuste fiscal às forças armadas; e até divulgaram (a Marinha, no caso) um insubordinado vídeo com mensagem crítica à ideia desse projeto do governo, e ainda insinuando que o povo brasileiro viveria só se divertindo e sem trabalhar (que desconhecimento da escala 6×1…).
A envergadura do plano de golpe, do qual se tem cada vez mais detalhes, sem dúvidas deveria fazer com que os balanços e análises sobre este 2024 que se encerra trouxesse a pauta “sem anistia” como pauta prioritária do ano de 2025.
E o segundo fato: também há algumas semanas, o Governo Lula 3 operou um feito digno não só de comemoração, mas de reconhecimento político à altura. Ainda que com todos os desafios que vivemos hoje referentes aos preços dos alimentos, que a Reforma Tributária finalmente aprovada pelo presidente vai isentar de tributação, atingimos o menor índice de pobreza e miséria que se tem registro. Não é por termos nos habituado a ver Lula fazendo coisas que nunca antes foram feitas na história que deveríamos perceber essa conquista com apatia.
Sempre que quebrarmos recordes de menor índice de pobreza e fome no país, isso deve ser considerado histórico e digno de comemoração, e era essa a notícia – muito mais do que os debates sobre o próximo ajuste fiscal – que deveria estar tendo o maior destaque nos balanços e avaliações de fim de ano.
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