QUANTO VALE 1 DÉCIMO?

Por Rayane Andrade – Advogada Popular

A quarta feira de cinzas do carnaval de 2018 teve uma das apurações mais esperadas dos últimos anos. O resultado: em 1º, a aclamada escola Beija-Flor de Nilópolis – com 269,6 pontos, em segundo lugar a turma do Paraíso do Tuiuti – com 269,5 pontos.

A diferença pífia entre as pontuações nos coloca a questão: quanto vale 1 décimo? A forte repercussão do enredo forte que a escola carioca trouxe é certamente um dos pesos dessa balança. O samba, já premiado com o tamborim de ouro de 2018, “Meu Deus! Meu Deus! Está extinta a escravidão?” emociona e com coragem denunciou o processo de escravidão no Brasil e seus desdobramentos atuais.

A escola que fez a Globo silenciar, que constrangeu seus comentaristas e que viralizou nas redes, cantou o que a classe trabalhadora expressou nas ruas durante os quatro dias de festa. O peso da narrativa que abriu seu desfile com a representação dos horrores da escravização, apresentou as contradições entre o açoite do feitor, a cura dos pretos velhos e a identificação de classe daquele que oprimia seus iguais.

A escola que em 2017 passou por momentos difíceis, e lutou para permanecer no grupo especial fez um desfile tão poderoso que não poderia apresentar outro resultado. As redes proclamam: A Tuiuti é a campeã do povo!

O título, justo e necessário, anima a luta que se seguirá findo o desfile das campeãs no sábado. Ao ter como a primeira de suas alegorias chamada de Tumbeiro e a sua última, cujo principal destaque foi o vampirão neoliberal, Neo-Tumbeiro a agremiação nos ensinou que não podemos separar a questão racial da de classe.

O questionamento – a escravidão realmente acabou – é preciso. Os navios que trouxeram de África reis e rainhas para serem vendidos, o país que teve suas fortunas construídas a partir do latifúndio e da venda de corpos negros, experimentou a conta gotas qualquer tipo de democracia.

Nossa história é marcada pela tragédia da escravidão e a herança dos senhores persiste através da sanha do mercado financeiro em destruir qualquer tipo de garantia trabalhista. Não bastasse isso, a escola traduz para os manifestoches quem são seus reais inimigos. A mão da manipulação, que, registre-se, concedeu apenas 35 segundos de destaque para o desfile da Tuiuti, foi exposta ao mundo.

Nossa estrutura fundiária permanece praticamente inalterada, é o nosso povo preto que continua a sofrer com o genocídio – para usar os termos de Abdias do Nascimento. São as pessoas negras as mais diretamente afetadas pela Emenda constitucional 95 que revogou a vacilante Carta de 88. Não é aleatório que o enredo comece e termine da forma como foi. Voltamos ao mapa da fome. A miséria cresce na mesma velocidade que os lucros do setor financeiro.

Os dólares que adornam o pescoço do Vampirão, recebido na avenida com sonoros “Fora Temer”, demonstram que os interesses que movimentam a máquina de moer gente do Capital são estrangeiros. Torcemos pela Tuiuti, e assim como muito, acreditei que a escola seria riscada do mapa das disputas carnavalescas. Mas assim como fomos pegos de surpresa pelo brilhantismo do morro, o décimo que faltou para o primeiro lugar sobra na sensação de vitória que sentimos com o segundo lugar.

Ironias a parte, o vice-lugar das campeãs do Rio abalou as estrutura do vice-golpista de Brasília. Assistindo as comemorações na quadra da escola, vê-se a estrutura simples e a expressão de satisfação do povo, que como diz o poeta – trabalha o ano inteiro por um momento de sonho.

O décimo do placar – certamente influenciado pela Rede Globo – não fez falta a Tuiuti. O título não pertence somente à escola, mas a todas as brasileiras e brasileiros que vibraram com o samba, cantado por um homem e uma mulher, interligando a escravidão do passado com a do presente e deixando um recado belo e duro contra os golpistas.
Eles que se preparem, pois o morro já desceu.

Natália Bonavides

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